Mozart Gutterres relata sobre Jango e um dos momentos mais negros da história da Petrobrás

Motivado pela matéria “Congresso Nacional lança a revista ‘João Goulart’”, publicada no Conape Notícias nº 18, o engenheiro gaúcho Mozart de Araújo Gutterres, de 88 anos, enviou suas saudações à Conape, bem como um testemunho da sua experiência na Petrobrás e de momentos com o ex-presidente João Goulart, em Porto Alegre, no início da ditadura militar.

Publicamos a seguir um breve resumo do testemunho deste competente engenheiro que ocupou cargo de chefia na Refinaria Alberto Pasqualini (Refap), da Petrobrás, por sua competência profissional. Ele, a exemplo de muitos petroleiros, não escapou da sana persecutória daquele regime de triste história.

Em seu relato sobre a presença de João Goulart em Porto Alegre, em abril de 1964, Gutterres citou a participação de vários colegas de Petrobrás, entre eles o ex-Superintendente da Refinaria Duque de Caxias, o engenheiro Roberto Ribeiro Coimbra, que também sofreu com as pressões e o intervencionismo dos militares no interior da empresa. Coimbra, a exemplo do seu colega, enviou também um relato que resumiremos no próximo Conape Notícias.

Eles tiveram a má sorte de exercerem cargos de confiança numa Petrobrás que mais parecia uma unidade militar (um quartel) e não uma petrolífera brasileira, resultado da épica campanha “O Petróleo É Nosso” e da Lei do Petróleo 2004, em prol do desenvolvimento do Brasil e do bem-estar dos brasileiros.

Esses relatos demonstram que a Petrobrás vivia num clima de perseguições ideológicas, interrogatórios, pressões psicológicas, intrigas, clima conspiratório, exigências acima das atribuições dos empregados, entre outros excessos administrativos cometidos pelos interventores e seus colaboradores.

Com Jango em Porto Alegre

Os militares golpistas sustentavam que Jango havia abandonado o Brasil. No entanto, ele se encontrava em Porto Alegre, como destacou a citada revista “João Goulart”. Mozart Gutterres confirma este fato, pois foi testemunha ocular da presença de Jango.

“Participaram comigo nos acontecimentos de abril de 1964, diversos colegas da Petrobrás, a maioria já ‘viajou’, mas um deles, o Eng. Roberto Ribeiro Coimbra (que em 1964 foi Superintendente da Refinaria Duque de Caxias), teve presença decisiva”.

Gutterres sublinhou que em 1º de abril de 1964, quando da deposição de Jango, estava no Rio Grande do Sul. “Neste dia, presenciei e participei de encontros com Brizola, Ladário Telles (Comandante do III Exército), Jango e outras autoridades aqui em Porto Alegre, após o que o Presidente viajou para o exterior. Esses fatos não constam em nenhum documento ou declarações até hoje difundidas por historiadores de plantão”, declarou Mozart.

No dia 2 de abril, o engenheiro participou de uma comissão que foi ao Terminal de Derivados (da Refap) e constataram as filas de caminhões retirando gasolina e óleo diesel que estava sendo transportadas para cidades (do interior do Rio Grande do Sul) favoráveis ao golpe militar. Tratava-se de execução de ordens (por escrito) do III Exército, sublinhou o engenheiro Gutterres, então Chefe de Divisão do Terminal.

Ingresso na Petrobrás

Em 1962, por sugestão dos colegas engenheiros Coimbra e Welausen, ambos da Petrobrás, Mozart participou de processo seletivo da estatal, que iniciara as obras de construção da Refap, em Canoas. As vagas eram para engenheiros com experiência em obras civis e montagem industrial.

Mozart preenchia aos requisitos exigidos e, após ser entrevistado por uma comissão de engenheiros, foi admitido e encaminhado para estágios na Reduc e no Oleoduto Rio-Belo Horizonte (Orbel), ambas no Rio de Janeiro. Estagiou também na Refinaria Presidente Bernardes de Cubatão (RPBC) e no oleoduto Cubatão-São Paulo, entre outros.

Nesse período, Mozart participava ativamente da política, e fora eleito prefeito de Pinheiro Machado, uma cidade localizada no extremo sul do Brasil. “Não houve tempo para solicitar licença e/ou renunciar ao cargo de Prefeito. Isso só aconteceu após concluir os estágios [pela Petrobrás] fora do Estado”.

Na Petrobrás, entre outros projetos, atuou no Grupo de Construção do Oleoduto Tramandaí-Canoas e no Terminal Marítimo de Tramandaí (GTOT), chefiado pelo engenheiro Coimbra.

Demissão

Além de profissional competente, Mozart foi ativista sindical, e concorreu às eleições sindicais de 1963, na qual foi eleito 2º Vice-Presidente do Sindicato dos Petroleiros de Canoas.

Em 1964, estava em curso uma onda de demissões na área de Engenharia. Mozart disse que entre os demitidos encontrava-se o Presidente da Associação dos Trabalhadores da Indústria do Petróleo de Canoas, Cassiano Hypolito dos Santos. “Como Vice-Presidente, assumi a Presidência da Associação”.

Em maio de 1964, além das demissões, a ditadura cassou os líderes sindicais e os substituíam por interventores. Mozart foi um dos dirigentes cassados, além de ter sido suspenso de suas atividades na estatal, por 10 dias, pelo Coronel Oriovaldo Pereira Lima, em 25/5/64. Alegação: “Ter participado ostensivamente de manifestações de caráter político”.

Enquanto no Rio de Janeiro, seu colega Roberto Coimbra fora dispensado da Superintendência da Reduc. Sobre este tema falaremos mais no próximo Conape Notícias.

Mozart foi pressionado com interrogatórios no interior da empresa, no III Exército e no DOPS, em Canoas. “O delegado se convenceu de que minhas atividades como Prefeito de Pinheiro Machado não eram de agitação popular nem subversivas (acusações por ter distribuído sementes de cereais a pequenos agricultores que se organizassem), me liberou e respondeu à Petrobrás, fui ouvido como testemunha (e não como indiciado)”.

Em 24/1/69, o regime de exceção instalado na Petrobrás demitiu o petroleiro, em função das atividades políticas pretéritas, inclusive quanto ao cargo de prefeito de Pinheiro Machado.

O problema vivido por Gutterres é semelhante ao do colega Coimbra: eram profissionais de alto gabarito e cidadãos progressistas, que ocupavam cargos de confiança num dos momentos mais negros da história do Brasil e da Petrobrás. Ou seja, os órgãos de inteligência do regime, inclusive dentro da estatal, não iriam deixá-los em paz. Assim, trataram de demiti-los dos cargos.

m 16/3/69, o engenheiro Coimbra envia carta a Gutterres, na qual lamentou a demissão do colega. Entre outras palavras, Coimbra manifestou: “Foi uma surpresa desagradável, e uma revolta a que tive ao ler tua carta”.

Em janeiro de 1969, o jornal “Nova Dimensão”, do Sindipetro/Sul, em seu editorial “Delação e Indústria”, manifestou: “Comprovando a veracidade … basta que se verifique a maneira odiosa com que foi afastado da REFAP o companheiro Mozart Araújo Gutterres, conhecedor profundo da Petrobrás e técnico de excepcional qualidade”.

Com sua demissão, ele prosseguiu com o trabalho de engenheiro em empresas privadas. E, igualmente a muitos petroleiros perseguidos políticos, ficou marcado pela demissão da Petrobrás. Assim, para sobreviver, era obrigado a omitir tal condição.

Anistia

Com o advento da Lei de Anistia (1979), foi anistiado em 1987, com publicação no Diário Oficial de 8/7/1987. Retornou à Petrobrás e trabalhou até 1991, quando aceitou o acordo para se aposentar pela empresa, como Engenheiro Grupo IV.

Natural de Alegrete (RGS), a 19/01/1926, Mozart Gutterres é filho de João do Prado Gutterres, que foi um bravo homem que comandou um pelotão junto às forças maragatas lideradas por Honório Lemos, conhecido como o “Leão do Caverá”, que participava da luta armada contra Borges de Medeiros no governo do estado, que não aceitava perder eleições livres.

Fonte: Conape Notícias nº 19 (jul-ago/2014)

Montagem sob foto da Refap/Petrobrás.

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